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segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

OS SAPATOS DE MEUS PAIS




          Iniciei minha vida e minha caminhada aqui com os sapatos que me deram; os sapatos escolhidos para mim pelo cuidado e pelo carinho de meus pais. Com a inocência da infância, eu os aceitava e eles até me pareciam ser os melhores, os mais perfeitos, pois foram escolhidos por “meus heróis”, por aqueles que tudo sabiam.  

Mas o passar do tempo vai empurrando-nos, inexoravelmente, para fora, para o mundo e seus desafios. Na juventude e na mocidade, os sapatos de meus pais começaram a me parecer sem graça, sem estilo, envelhecidos... Aqueles sapatos já me apertavam os pés, impediam-me de correr, de caminhar sobre novos terrenos, de ousar e de arriscar. Abandonei-os e escolhi modelos novos que eram fortes, que me levariam por onde eu quisesse... Seriam os melhores! Afinal, eu sabia tudo! Julgava e criticava quaisquer outros modelos e caminhantes... Eu podia, eu sabia...

E fui caminhando... As pedras dos caminhos escolhidos, com o tempo e com os tropeços, foram desgastando meus lindos e arrogantes sapatos, que antes me pareceram perfeitos para qualquer caminhada. Agora já se revelavam rotos e furados pelos tropeços em erros e perdas... Mas foram ficando maiores, mais largos, tornando-se mais flexíveis e maleáveis...

Eu me vejo hoje recordando dos velhos modelos de sapato que eu rebarbara, modelos deixados, generosamente, para mim, pela vivência dos mais vividos. Hoje me vejo calçando-os, ainda que com a marca de meus pés.  Hoje posso sentir a ansiedade, o medo, a tristeza de meus pais, quando me recusei a aceitar suas experiências e caminhar com eles. Posso entender o chamado ansioso àqueles que amamos, porque hoje tento, também, oferecê-los aos mais jovens e eles, também, os recusam...

A generosidade, a compaixão, o Amor, fazem com que queiramos aplainar o caminho uns dos outros; faz com que ofereçamos calçados adequados aos caminhos desse mundo tão difícil, mas uma necessidade maior nos faz recusar a vivência dos mais antigos. Acredito que seja porque precisamos experimentar a vida com nossos próprios gostos e sabores, precisamos moldar nossos próprios calçados.

Hoje revejo na lembrança minha mãe ralhando, lutando com a filha teimosa... Recordo avós e tios que ajudaram a me criar, recordo suas lutas tentando, eles também, me calçar e proteger... Recordo seus chamados, agoniados, zangados, frustrados... Hoje vejo meu pai com o sorriso paciente do muito idoso, que sabe das coisas além do que elas aparentam...  Às vezes ainda teimo como menina, mas logo a memória dos meus tropeços se faz presente e busco “calçar seus calçados”. A maioria deles já foi aqui deixada. Outros, ainda aqui presentes, todos generosos, ainda oferecendo sua sabedoria, tantas vezes ironizada. Mas tenho aprendido, com a humildade que a vida traz, a julgar menos, a aceitar a recusa dos mais jovens e a valorizar, a aproveitar e a honrar, cada vez mais, as marcas dos sapatos de cada um, as marcas dos sapatos de meus pais.

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