Iniciei
minha vida e minha caminhada aqui com os sapatos que me deram; os sapatos
escolhidos para mim pelo cuidado e pelo carinho de meus pais. Com a inocência
da infância, eu os aceitava e eles até me pareciam ser os melhores, os mais
perfeitos, pois foram escolhidos por “meus heróis”, por aqueles que tudo
sabiam.
Mas o passar do tempo vai empurrando-nos, inexoravelmente,
para fora, para o mundo e seus desafios. Na juventude e na mocidade, os sapatos
de meus pais começaram a me parecer sem graça, sem estilo, envelhecidos...
Aqueles sapatos já me apertavam os pés, impediam-me de correr, de caminhar
sobre novos terrenos, de ousar e de arriscar. Abandonei-os e escolhi modelos
novos que eram fortes, que me levariam por onde eu quisesse... Seriam os
melhores! Afinal, eu sabia tudo! Julgava e criticava quaisquer outros modelos e
caminhantes... Eu podia, eu sabia...
E fui caminhando... As pedras dos caminhos escolhidos, com o
tempo e com os tropeços, foram desgastando meus lindos e arrogantes sapatos,
que antes me pareceram perfeitos para qualquer caminhada. Agora já se revelavam
rotos e furados pelos tropeços em erros e perdas... Mas foram ficando maiores,
mais largos, tornando-se mais flexíveis e maleáveis...
Eu me vejo hoje recordando dos velhos modelos de sapato que
eu rebarbara, modelos deixados, generosamente, para mim, pela vivência dos mais
vividos. Hoje me vejo calçando-os, ainda que com a marca de meus pés. Hoje posso sentir a ansiedade, o medo, a
tristeza de meus pais, quando me recusei a aceitar suas experiências e caminhar
com eles. Posso entender o chamado ansioso àqueles que amamos, porque hoje
tento, também, oferecê-los aos mais jovens e eles, também, os recusam...
A generosidade, a compaixão, o Amor, fazem com que queiramos
aplainar o caminho uns dos outros; faz com que ofereçamos calçados adequados
aos caminhos desse mundo tão difícil, mas uma necessidade maior nos faz recusar
a vivência dos mais antigos. Acredito que seja porque precisamos experimentar a
vida com nossos próprios gostos e sabores, precisamos moldar nossos próprios
calçados.
Hoje revejo na lembrança minha mãe ralhando, lutando com a
filha teimosa... Recordo avós e tios que ajudaram a me criar, recordo suas
lutas tentando, eles também, me calçar e proteger... Recordo seus chamados,
agoniados, zangados, frustrados... Hoje vejo meu pai com o sorriso paciente do
muito idoso, que sabe das coisas além do que elas aparentam... Às vezes ainda teimo como menina, mas logo a
memória dos meus tropeços se faz presente e busco “calçar seus calçados”. A
maioria deles já foi aqui deixada. Outros, ainda aqui presentes, todos generosos,
ainda oferecendo sua sabedoria, tantas vezes ironizada. Mas tenho aprendido,
com a humildade que a vida traz, a julgar menos, a aceitar a recusa dos mais
jovens e a valorizar, a aproveitar e a honrar, cada vez mais, as marcas dos
sapatos de cada um, as marcas dos sapatos de meus pais.
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